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No final, os actores misturaram-se com a assistência, cheias de amabilidade e paciência para as solicitações e comentários mais diversos. Ruy de Carvalho - que fez uma leitura absolutamente notável - estava muito penalizado por não ter encontrado a música do Falso Cego, que lhe permitiria recuperar esse aspecto marcante da representação de 1965. O profissionalismo deste elenco continua a ser uma marca de distinção, a que ninguém consegue ficar alheio.
O director do São Luís esteve na plateia e a Leya foi representada por Pedro Sobral, que orientou o evento.
Provou-se ali, preto no branco, que, sem muita complicação, é possível "ressuscitar" velhos textos.
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A Ivone Ralha tirou a foto (em que só não se vê Armando Caldas, escondido por trás da actriz Ângela Correia).
E eis o texto – “subversivo” ou “imoral”? – que a Censura impediu de sair na revista “Eva” de 1-3-65 (datado de 17 de Fevereiro):
Um autor português: José Cardoso Pires. Um encenador português: Fernando Gusmão. Uma companhia portuguesa: o Teatro Moderno de Lisboa. Tudo prata da casa, tudo nosso. Num país em que a crise teatral se arrasta há tantos anos pelas razões conhecidas (mas nem sempre reconhecidas); onde não há escolas dramáticas a sério, que “fabriquem” autores, encenadores, etc.; onde os autores escrevem as suas peças para a gaveta ou quando muito para as tipografias; onde a experiência dos palcos é escassa, apesar da boa vontade dos teatros experimentais; onde a sombra tutelar de Gil Vicente vagueia cada vez mais pelas ruas da amargura – aqui, hoje, entre nós, este “Render dos Heróis” é um autêntico “milagre”. Não nos recordamos de ver nada criado por mãos exclusivamente nacionais que o supere como espectáculo. Um espectáculo de dinamismo muito próprio, entrecortado, acumulativo, de admirável beleza plástica, em que o ácido sabor tradicional dos autos recebe com extrema naturalidade as mais variadas sugestões e conquistas do teatro moderno. Só um encenador de larga cultura, de gosto seguro, imaginativo e consciente, conseguiria montar esta peça complexa com a aparente simplicidade alcançada. É certo que Fernando Gusmão tinha a seu favor alguns trunfos consideráveis: a linguagem forte e enxuta de Cardoso Pires, dum invulgar acabamento; actores de nomeada mas com bastante senso profissional para se dedicarem de alma e coração a pequenos papéis; um visível entusiasmo de todos pelo que estavam a fazer, etc. Seja como for, este é possivelmente o momento mais alto da sua carreira de homem de teatro.
Bom nível de representação, com meia dúzia de figuras excepcionais; mas sob este aspecto o mais importante é o rendimento do conjunto, um conjunto com perto de trinta personagens que atinge uma evidente harmonia.
Quanto a Cardoso Pires, só há uma coisa a pedir-lhe: mais teatro. O grande novelista que é não perderá nada com isso e, em contrapartida, todos nós ganharemos.
Não sei se o texto era para sair assinado, e com isso “agravar” o seu caso perante a Censura. Mas o autor era Carlos de Oliveira – que com muito orgulho associei a esta sessão e que permitiu prestar tributo ao trabalho de Fernando Gusmão. Contavam os actores, no convívio do final da sessão de ontem, que a publicidade à peça – subsidiada pela Fundação Gulbenkian – era feita por uns folhetos metidos nas caixas de correio, porque foi proibida a publicidade em jornais e, sobretudo, a associação do nome da peça ao autor do texto. E que a peça teve uma incrível adesão do público, mas foi proibida de continuar a sua carreira e de ser representada fora de Lisboa. Eis algumas coisinhas a acrescentar à lista daquilo que formatou uma parte da vida neste país…
Bêjos, no rescaldo de um dia feliz
Ana