terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O email feliz da Ana Cardoso Pires: "Magnífica sessão de leitura"

Tudo se concertou para fazer do fim de tarde no Jardim de Inverno do São Luís uma sessão memorável. O espaço é lindo! A sala a cheia; os actores, do melhor; a selecção de textos, perfeita; a introdução de Luís Francisco Rebelo, oportuna e até comovida; o ambiente, caloroso. A leitura assim feita, tem ritmo, não cansa, empolga! Cada vez gosto mais. Há dois anos, tinha sido surpreendida por uma leitura de excertos de "Alexandra Alpha" por Isabel Wolmar, na Casa da Comarca da Sertã; ontem foi o "Render dos Heróis" por seis magníficos: Rui Mendes, Ruy de Carvalho, Carmen Dolores, Ângela Ribeiro, Luís Alberto e Armando Caldas. Desde que morreu o Mário Viegas, perdi o gosto por este tipo de intervenções; mas está a renascer uma verdadeira fã.

No final, os actores misturaram-se com a assistência, cheias de amabilidade e paciência para as solicitações e comentários mais diversos. Ruy de Carvalho - que fez uma leitura absolutamente notável - estava muito penalizado por não ter encontrado a música do Falso Cego, que lhe permitiria recuperar esse aspecto marcante da representação de 1965. O profissionalismo deste elenco continua a ser uma marca de distinção, a que ninguém consegue ficar alheio.
O director do São Luís esteve na plateia e a Leya foi representada por Pedro Sobral, que orientou o evento.
Provou-se ali, preto no branco, que, sem muita complicação, é possível "ressuscitar" velhos textos.


O Zé teria ficado muito orgulhoso pela maneira como o seu texto foi tratado, ontem!
A Ivone Ralha tirou a foto (em que só não se vê Armando Caldas, escondido por trás da actriz Ângela Correia).

E eis o texto – “subversivo” ou “imoral”? – que a Censura impediu de sair na revista “Eva” de 1-3-65 (datado de 17 de Fevereiro):

Um autor português: José Cardoso Pires. Um encenador português: Fernando Gusmão. Uma companhia portuguesa: o Teatro Moderno de Lisboa. Tudo prata da casa, tudo nosso. Num país em que a crise teatral se arrasta há tantos anos pelas razões conhecidas (mas nem sempre reconhecidas); onde não há escolas dramáticas a sério, que “fabriquem” autores, encenadores, etc.; onde os autores escrevem as suas peças para a gaveta ou quando muito para as tipografias; onde a experiência dos palcos é escassa, apesar da boa vontade dos teatros experimentais; onde a sombra tutelar de Gil Vicente vagueia cada vez mais pelas ruas da amargura – aqui, hoje, entre nós, este “Render dos Heróis” é um autêntico “milagre”. Não nos recordamos de ver nada criado por mãos exclusivamente nacionais que o supere como espectáculo. Um espectáculo de dinamismo muito próprio, entrecortado, acumulativo, de admirável beleza plástica, em que o ácido sabor tradicional dos autos recebe com extrema naturalidade as mais variadas sugestões e conquistas do teatro moderno. Só um encenador de larga cultura, de gosto seguro, imaginativo e consciente, conseguiria montar esta peça complexa com a aparente simplicidade alcançada. É certo que Fernando Gusmão tinha a seu favor alguns trunfos consideráveis: a linguagem forte e enxuta de Cardoso Pires, dum invulgar acabamento; actores de nomeada mas com bastante senso profissional para se dedicarem de alma e coração a pequenos papéis; um visível entusiasmo de todos pelo que estavam a fazer, etc. Seja como for, este é possivelmente o momento mais alto da sua carreira de homem de teatro.
Bom nível de representação, com meia dúzia de figuras excepcionais; mas sob este aspecto o mais importante é o rendimento do conjunto, um conjunto com perto de trinta personagens que atinge uma evidente harmonia.
Quanto a Cardoso Pires, só há uma coisa a pedir-lhe: mais teatro. O grande novelista que é não perderá nada com isso e, em contrapartida, todos nós ganharemos.

Não sei se o texto era para sair assinado, e com isso “agravar” o seu caso perante a Censura. Mas o autor era Carlos de Oliveira – que com muito orgulho associei a esta sessão e que permitiu prestar tributo ao trabalho de Fernando Gusmão. Contavam os actores, no convívio do final da sessão de ontem, que a publicidade à peça – subsidiada pela Fundação Gulbenkian – era feita por uns folhetos metidos nas caixas de correio, porque foi proibida a publicidade em jornais e, sobretudo, a associação do nome da peça ao autor do texto. E que a peça teve uma incrível adesão do público, mas foi proibida de continuar a sua carreira e de ser representada fora de Lisboa. Eis algumas coisinhas a acrescentar à lista daquilo que formatou uma parte da vida neste país…

Bêjos, no rescaldo de um dia feliz

Ana